Lição de Preto Velho
Cenário:
reunião mediúnica num Centro Espírita Kardecista.
A reunião na sua fase teórica desenrola-se sob explanação do Evangelho Segundo o Espiritismo.
Os membros da seleta assistência ouvem a lição atentamente. Sobre a mesa, os livros da Codificação, a água a ser fluidificada e o Evangelho aberto na lição nona do capítulo dez: “O Argueiro e a trave no olho”.
Dr. Anestor, o dirigente dos trabalhos, tecia as últimas considerações a respeito da lição daquela noite. O ambiente estava impregnado das fortes impressões deixadas pelas palavras do Mestre Jesus: “Por que vês tu o argueiro que está no olho do teu irmão?”.
Findos os esclarecimentos, apagaram-se as luzes principais, para que se desse início à comunicação dos Espíritos daqueles que, indevidamente, são classificados de “mortos”.
Feita a prece de abertura por um dos presentes, iniciam-se as manifestações. Pequenas mensagens, de consolo e de apoio, são dadas aos presentes. Quando se abriu o espaço destinado à comunicação das entidades não habituais, os espíritos necessitados, ocorreu o inesperado: a médium Letícia, moça de educação esmerada, traços delicados, de quase trinta anos de idade, dez dos quais dedicados à educação da mediunidade, sentiu profundo arrepio percorrendo-lhe o corpo.
Nunca, nas suas experiências na mesa, tinha sentido coisa parecida. Tomada por uma sacudidela incontrolável, suspirou profundamente e, de forma instantânea, foi “tomada” por um espírito. Letícia nunca tinha visto tal coisa: estava consciente, mas seus pensamentos estavam sob controle da entidade, que tinha completo domínio sobre sua psique.
O dirigente, como sempre fez nos seus vinte e tantos anos de prática espírita, deu-lhe as boas vindas, em nome de Jesus.
– Seja bem vindo, irmão, nesta Casa de Caridade, disse-lhe Dr. Anestor.
O Espírito responde:
“Zi-boa noite, zi-fio. Suncê me da licença pra eu me aproximá de seus trabalhos, fio?”.
– Claro, meu companheiro, nosso centro espírita está aberto a todos os que desejam progredir, respondeu o diretor dos trabalhos.
Todos os presentes perceberam que a entidade comunicante era um preto-velho, espírito que habitualmente comunica-se em terreiros de Umbanda. A entidade comunicante continua: “Vós mecê não tem aí uma cachacinha pra eu bebê, Zi-fio?”.
– Não, não temos, disse-lhe Dr. Anestor.
– Você, continuou o doutrinador, precisa se libertar destes costumes que traz de terreiros, o de beber bebidas alcoólicas; o Espírito precisa evoluir, continua o dirigente.
“Vós mecê não tem aí um pito? Tô com vontade de pitá um cigarrinho, Zi-fio”.
– Ora, irmão, você deve deixar o hábito adquirido nas sessões de umbanda, se queres progredir. Que benefício traria isso a você?
O Preto Velho responde:
“Zi-preto veio gostou muito de duas falas, mas suncê e mais alguns dos que aqui estão, não faz uso do cigarro, Zi-fio?
– Suncê mesmo não toma suas bebidinhas nos fins de sumana?
– Vós mecê pode me explica a diferença que tem o seu espírito que bebe whisky, no fim de sumana, do meu espírito que bebe aqui?
– Ou explica pra mim, a diferença do cigarrinho que suncê fuma lá fora, daquele que eu quero pitá aqui dentro?”.
O dirigente não pôde explicar, mas ainda tentou arriscar:
– Ora, meu irmão, nós estamos num templo espírita e é preciso respeitar o trabalho de Jesus.
O espírito do preto-velho retrucou, agora já não mais falando como caipira:
“- Caro dirigente, na Escola Espiritual da qual faço parte, temos aprendido que o verdadeiro templo não se constitui nas quatro paredes a que chamais Centro Espírita. – Para nós, estudiosos da alma, o verdadeiro templo é o templo do Espírito, e é ele que não deve ser profanado com o uso do álcool e fumo, como vem sendo feito pelos senhores. – Vosso exemplo na sociedade, perante os estranhos e mesmo seus familiares, não tem sido dos melhores. – O hábito, mesmo social, de beber e fumar deve ser combatido na Terra em nome do Cristo. – A lição do próprio comportamento é que é fundamental na vida de quem quer ensinar”.
Houve grande silêncio diante de argumentos tão seguros.
Pouco depois, o espírito continuou:
– “Suncê me descurpa a visitação que fiz hoje, e o tempo que tomei do seu trabalho. Vou-me embora para donde vim, mas antes, Fio, queria deixar a sunceis um conselho: que tomassem cuidado com vossas obras, pois, como diria Nosso Sinhô, tem gente “coando mosquito e engulindo camelo”. Cuidado, irmãos, muito cuidado. Preto-véio deixa todos um pouco da paz que me vem de Deus. Fica meus sinceros votos de progresso a todos que militam nesta Seara”.
Deu uma sacudida na médium, como nas manifestações de Umbanda, e afastou-se para o mundo espiritual.
O dirigente ainda quis perguntar-lhe o porquê de falar “daquela forma”.
Não houve resposta.
No ar ficou um profundo silêncio, uma fina sensação de paz e uma importante lição: lição para os onfrades “meditarem”…
O texto acima é parte do livro entitulado:
“O Espiritismo e as Doutrinas Estranhas”.
Escritor, Josué de Freitas